A menos de um ano de celebrar os 90 anos, a Banda Musical de São Martinho do Campo, Valongo, está mais jovem e viva do que nunca, graças à harmoniosa ligação entre as gerações mais velhas e as mais novas. À orquestra ligeira seguiu-se a banda juvenil, a escola de música e, agora, a banda infantil.
Todas as tardes e noites no Espaço Musicultural de Campo, casa da Banda Musical de São Martinho do Campo, fundada, em 1929, por José Teixeira Ferreira, as notas musicais ganham vida através dos mais diversos instrumentos e flutuam pelos corredores inundando-os de sons melodiosos.
Na sala onde Letícia Coelho está a ter aulas, dos acordes do piano sai a “Marcha Turca”, do compositor austríaco Mozart, um dos favoritos da jovem aluna, de 14 anos.
“Gosto de tocar, principalmente, peças de Mozart e Beethoven, apesar de achar que são bastante distintas. Beethoven tem músicas mais lentas e mais calmas, enquanto Mozart tem peças mais engraçadas e alegres”, aponta a jovem aluna, que começou a tocar piano há cerca de sete anos e acalenta o sonho de ser pianista.
O gosto pela música herdou-o da avó. “A minha maior influência foi a minha avó, pois cantava muito para mim e sempre quis que tocasse alguns instrumentos. Comecei com o órgão e, um ano mais tarde, passei para o piano”, conta Letícia, explicando que este instrumento permite “fazer uma melodia mais harmoniosa”.
A escola de música sendo um espaço aberto à comunidade, não é de estranhar ver entre os aprendizes pessoas um pouco mais velhas, como Rosário Guimarães, administrativa de 49 anos, que há pouco mais de dois anos decidiu aprender a tocar oboé.
“Sou a aluna mais velha da escola, mas já vivo com estas andanças da banda há muitos anos. Desde que comecei a namorar com o meu marido familiarizei-me de uma forma mais estreita com isto, porque toca na banda há 41 anos e já era músico. Aliás, nós conhecemos num ambiente desses, eu fazia teatro e ele tocava para eu cantar”, explica Rosário Guimarães, que também tem também os dois filhos na banda musical.
O instrumento que está a aprender a tocar descobriu-o por causa de uma música da banda sonora do filme “A missão”, composta por Ennio Morricone. “Adorava ouvi-la e, mais tarde, descobri que era tocada com o oboé”, avança a aluna mais velha, acrescentando: “Faz-me lembrar a fase da minha adolescência e é um instrumento que quando ouço o professor Jorge tocar, tenho de o fazer de olhos fechado, porque me leva para outro lugar. Adoro o som”.
O que Rosário Guimarães não esperava era que fosse tão complicado. “Não sabia no que me ia meter quando decidi aprender, porque é um instrumento que exige muita caixa-de-ar, exercita todos os músculos faciais, mas é um bocadinho complexo”.
Mais facilidade em aprender a tocar instrumentos de percussão, como a bateria e o xilofone, tiveram Duarte e João, de sete e oito anos. Ambos fazem parte dos 22 elementos que compõem o mais recente projeto desta associação: a banda infantil.
O mais novo prefere usar as baquetas para bater nos pratos e nos tambores. “A bateria foi o instrumento mais fácil de aprender e é o que mais gosto”, refere Duarte, que está na banda há cerca de dois anos. “Pedi à minha mãe para me inscrever na banda. Disse que queria muito vir, porque vi-a a dar aulas de música e também queria participar”, conta.
João gosta mais de tocar o xilofone. “Quis vir para a música para tocar bateria, mas não sabia que ia aprender também xilofone e pensava que era muito mais fácil tocar bateria. Mas o xilofone é mais fácil e eu gosto mais”, explica o mais velho, que já integrava a banda juvenil.
Portas abertas a partir dos três anos
Quando ao projeto da banda infantil que agora arranca, o maestro Marco Araújo, formado no Conservatório de Música do Porto e licenciado em Música pela Escola Superior de Educação de Coimbra, anota que nasceu das turmas de música na infância. “Estas aulas arrancaram há dois anos e, após o percurso destes meninos na aprendizagem da música, em que a técnica individual foi aprimorada, chegou agora a altura de fazer a banda infantil”, salienta o responsável pela banda.
Em São Martinho do Campo o ensino da música às crianças começa muitos antes de estas aprenderem a ler e a escrever. “A nossa escola de música abre portas a partir dos três anos. Temos neste momento duas turmas, da chamada música para bebés e para a infância. Essas disciplinas são lecionadas por educadoras de infância, com formação em música, e cada turma tem cerca de 10 miúdos”, explica o maestro, avançando: “Dos três aos seis estão nessas turmas, depois ingressam no processo normal de aprendizagem da escola de música”.
Quando passam para a fase mais avançada, os alunos podem escolher entre os mais diversos instrumentos como a flauta, clarinete, saxofone, oboé, trompete, trompa, trombone, tuba, bateria ou piano, entre outros.
Dos alunos que frequentam a escola, oito vão integrar a banda musical a partir das festas de Nossa Senhora do Campo, que se realizam no final de maio, aumentando para 60 o número de músicos que a compõem e assegurando a continuidade desta coletividade. Para além da orquestra sénior, também há a banda juvenil, com cerca de 35 elementos.
“Da escola de música vai sair o futuro da banda de São Martinho do Campo, aqueles que vão ser responsáveis pela continuidade desta geração e das vindouras, pelo que dentro de todo o amadorismo que nos é característico, tentamos alcançar os padrões dos profissionais. A formação dos músicos está mais elaborada, há uma busca mais incessante da formação, mesmo das academias oficiais e conservatórios e isso obriga o maestro a atualizar-se e ser mais responsável por aquilo que está a fazer”, salienta Marco Araújo, que também está encarregue de fazer o acompanhamento dos 36 alunos da escola que estão nas academias de ensino oficial da música, espalhadas pelo Conservatório do Porto, pela Academia Costa Cabral e também em Paredes e Lousada.
Viveiro de talentos
A mesma ideia é defendida pelo presidente Jorge Benido. “A escola é fundamental para o futuro da banda. É um viveiro de talentos que tentamos potenciar para que, futuramente, a qualidade artística da banda vá melhorando. Todos os anos temos músicos que terminam a formação na escola e alguns deles integram a banda e isso faz com que a qualidade, ao longo dos anos, tenha aumentado”, enaltece o dirigente, de 42 anos, que integra a filarmónica há quase 30 anos (toca saxofone alto), ressalvando que todos os alunos têm um professor com formação específica no instrumento que estão a lecionar. “Além de que temos outros professores para a parte da formação musical, como complemento aos instrumentos que cada um aprende”, refere ainda, anotando que “a escola tem 16 professores e cerca de 80 alunos”.
“No início nunca pensámos que o número de alunos fosse tão grande. Desde que temos estas instalações é óbvio que houve um crescendo de inscrições, temos uma taxa de assiduidade aos ensaios enorme, que ronda os 90 por cento”, avança o presidente, anotando que o facto de a escola não cingir a formação apenas aos instrumentos associados à banda, também fez com que despertasse um maior interesse nas pessoas em frequentar o espaço e em aprender música.
“O mais importante para nós é proporcionar um bom ensino da arte que é a música”, afirma Jorge Benido, que entrou para a banda musical de São Martinho do Campo há quase 30 anos, pela mão do elemento mais velho da orquestra, António Cunha, que entre 2000 e 2005 assumiu a função de maestro.
“Vivia relativamente próximo da casa do senhor Cunha, ouvia-o a ensaiar e a tocar com bastante frequência e foi isso que me despertou a curiosidade de vir para a música. Por arrasto, o meu pai também veio comigo e agora os meus filhos fazem também os dois parte da escola”, conta o dirigente associativo.
O ex-maestro recorda com orgulho o longo percurso na coletividade. “Enquanto fui o professor da banda integrei 63 aprendizes. Muitos ainda cá estão, outros desistiram. O meu aluno mais antigo é o nosso presidente”, recorda António Cunha, hoje com 68 anos, que entrou para a banda de São Martinho com apenas 9 anos. Começou por tocar trompete, depois de uma breve pausa passou para o clarinete, instrumento com o qual foi solista da banda durante 30 anos. Em 2000 subiu a maestro, função que ocupou até 2005. Parou um ano, mas continuou a dar aulas aos mais jovens. No regresso à banda levou nas mãos um novo instrumento: o saxofone de tenor.
“Subi a pulso, não tive conservatório, mas frequentei vários seminários, com grandes maestros, e frequentei o curso de regência”, justifica António Cunha, finalizando: “É um passado muito bonito”.
“Artigo publicado no Jornal de Notícias por Susana Silva no dia 30 de abril de 2018”